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Livro do Desassossego
Fernando Pessoa
Composto por Bernardo Soares,
ajudante de Guarda-livros na cidade de Lisboa
1
INTRODUÇÃO
Richard Zenith
Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu
instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar
começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma
aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força
para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha
cobardia.
Trecho 152
Fernando Pessoa não existe, propriamente falando. Quem nos disse foi Álvaro
de Campos, um dos personagens inventados por Pessoa para lhe poupar o esforço
e o incómodo de viver. E para lhe poupar o esforço de organizar e publicar o que há
de mais rico na sua prosa, Pessoa inventou o Livro do Desassossego, que nunca
existiu, propriamente falando, e que nunca poderá existir. O que temos aqui não é
um livro mas a sua subversão e negação, o livro em potência, o livro em plena ruína,
o livro-sonho, o livro-desespero, o antilivro, além de qualquer literatura, O que temos
nestas páginas é o génio de Pessoa no seu auge.
Muito antes dos desconstrutivistas chegarem para nos ensinar que não há
nada hors-texte, Fernando Pessoa viveu, na carne - ou na sua anulação -, todo o
drama de que eles apenas falam. A falta de um centro, a relativização de tudo
(inclusive da própria noção de “relativo”), o mundo todo reduzido a fragmentos que
não fazem um verdadeiro todo, apenas texto sobre texto sobre texto sem nenhum
significado e quase sem nexo - todo este sonho ou pesadelo pós-modernista não foi,
para Pessoa, um grandioso discurso. Foi a sua íntima experiência e ténue realidade.
E este livro-caos de desassossego foi o seu testemunho, lucidíssimo:
Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto
apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia
de ser o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos.
(Trecho 148)
Dúvida e hesitação são os dois absurdos pilares mestres do mundo segundo
Pessoa e do Livro do Desassossego, que é seu microcosmo.
Explicando o seu próprio mal e o do livro numa carta a Armando Cortes-
Rodrigues datada de 19 de novembro de 1914, o jovem Pessoa diz:
O meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no
Livro do Desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos. E numa
carta escrita um mês antes ao mesmo amigo, fala de uma depressão profunda e
calma, que só lhe permitia escrever pequenas coisas e quebrados e desconexos
pedaços do Livro do Desassossego. A este respeito, o da fragmentação
permanente, o autor e o seu Livro ficaram para sempre fiéis aos seus princípios. Se
Pessoa se dividiu em dezenas de personagens literários que se contradiziam uns
aos outros, e mesmo a si próprios, o Livro do Desassossego também foi um
multiplicar-se constante, sendo muitos livros atribuídos a vários autores, todos eles
incertos e vacilantes, como o fumo dos cigarros através do qual Pessoa, sentado
num café ou à sua janela, olhava a vida que passa.
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O Livro nasceu pelo menos um ano antes do trio Caeiro, Campos e Reis, com
a publicação, em 1913, de Na Floresta do Alheamento, a primeira prosa criativa
publicada por Pessoa. O texto foi assinado com o seu próprio nome e identificado
como Do Livro do Desassossego, em preparação.
Pessoa trabalhou nesta obra durante o resto da vida, mas quanto mais a
preparava, mais inacabada ficava. Inacabada e inacabável. Sem enredo ou plano
para cumprir, os seus horizontes foram alargando, os seus confins ficaram cada vez
mais incertos, a sua existência enquanto livro cada vez menos viável como, aliás, a
existência de Pessoa enquanto pessoa.
Tendo Ricardo Reis parado de evoluir (que evolução poderia haver para um
Greek Horace who writes in Portuguese?) e Alberto Caeiro (ou o seu fantasma, uma
vez que ele morreu em 1915) cessado de escrever em 1930, Pessoa insuflou então
nova vida no Livro do Desassossego, que passou a impor-se não menos do que
Álvaro de Campos (sempre uma presença marcante) na obra e no espírito do seu
criador. Campos e Bernardo Soares nunca se conheceram no - drama em gente -
encenado por Pessoa, mas é curioso notar que o primeiro documento (Trecho 230)
contido no primeiro envelope do seu vastíssimo Espólio traz a indicação A. de C (?)
ou L. do D. (ou outra coisa qualquer). Havia, de fato, uma forte concordância
intelectual e emocional entre o ajudante de guarda-livros e o Campos do último
período, já bem menos estridente que o futurista que escreveu - Ode Triunfal -. Se
os poemas escritos por este heterónimo envelhecido são muito parecidos - não
formalmente mas na sua temática existencial e no seu tom melancólico - aos versos
de Pessoa ele - mesmo, certas prosas de Campos, como "Ambiente", publicado em
1927 (com frases como "Exprimir-se é dizer o que não se sente" ou "Fingir é
conhecer-se"), poderiam ter sido assinadas por Bernardo Soares.
Talvez não seja completamente por acaso que a figura de Soares se revela
mais plenamente quando a biografia do engenheiro naval já tinha definhado (-
aposentado em Lisboa -, podemos só supor, pois o seu inventor não nos diz nada).
Não que uma ficção pudesse substituir a outra, mas havia paralelismos nos seus
hábitos. Soares, quando não estava no escritório, gostava de caminhar na Baixa,
onde frequentava talvez os mesmos cafés e a mesma tabacaria que Campos, e os
dois sentavam-se talvez não longe um do outro nos mesmos eléctricos. Eram
personagens de origem bem diversa no mundo definido por Pessoa, mas acabaram
por ocupar o mesmo campo da sua sensibilidade, que por sua vez foi definida, ou
muito colorida, pela cidade de Lisboa. Campos, Soares, Pessoa e Lisboa são, num
certo registro, sinónimos.
Bernardo Soares, o narrador principal mas não exclusivo do Livro do
Desassossego, era tão próximo de Pessoa - mais até do que Campos - que não
podia considerar-se um heterónimo autónomo. - E um semi-heterónimo-, escreveu
Pessoa no último ano da sua vida, "porque, não sendo a personalidade a minha, é,
não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela." Não há dúvida de que
muitas das reflexões estéticas e existenciais de Soares fariam parte da autobiografia
de Pessoa, se este tivesse escrito uma, mas não devemos confundir a criatura com
o seu criador. Soares não foi uma réplica de Pessoa, nem sequer em miniatura, mas
um Pessoa mutilado, com elementos em falta. Soares tinha pouca personalidade e
nenhum sentido de humor; Pessoa possuía ambas as coisas, e em grande medida.
Embora acanhado às vezes, Pessoa não se devia sentir - um daqueles trapos
húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se
esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentament- (Trecho 29). Como
o seu semi-heterónimo, Pessoa era um empregado de escritório na Baixa, mas
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enquanto aquele foi condenado à rotina de preencher com preços e quantias o Livro
de Razão de um armazém de fazendas, este teve um trabalho relativamente
prestigioso, escrevendo cartas comerciais em inglês e em francês. Pessoa prestou
serviço em várias firmas, jamais tendo sido obrigado a cumprir um horário fixo.
Quanto à vida interior dos dois, Soares toma a do seu progenitor como modelo:
- Criei em mim várias personalidades. ... [T]anto me exteriorizei dentro de mim que
dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena viva onde passam vários
actores representando várias peças (Trecho 299). Mas o que é isto? Podemos dar fé
a esta afirmação - que o ajudante de guarda- livros também tinha heterónimos? Não
será o próprio Pessoa que neste trecho está a falar? E não será Pessoa que
confessa: - Só uma vez fui verdadeiramente amado - (Trecho 235)? Não é ele que
acredita, ou quer acreditar, que - a literatura é a maneira mais agradável de ignorar a
vida- (Trecho 116)? Não é também ele, afinal, que um dia, olhando pela sua janela a
sacada da vizinha, se identificou com um pano deixado ali num canto? Claro que
sim. Pessoa fez-se nada para poder ser tudo, e todos. Soares, quando muito, era um
eco.
Se Bernardo Soares está muito aquém do Pessoa completo, as suas
meditações e devaneios tampouco são a súmula do Livro do Desassossego.
Embora Pessoa tenha acabado por atribuir o livro inteiro à autoria de Soares, a
fase mais caracteristicamente soariana - na qual a prosa é requintada mas directa -
limita-se ao período 1929-1935 (o último trecho datado é de 1934, mas Pessoa
decerto continuou a escrever para o Livro, pois na sua carta de 13/1/1935 a Adolfo
Casais Monteiro, fala no presente do seu "semi-heterónimo", que - aparece sempre
que estou cansado ou sonolento -. O Livro do Desassossego foi, antes de mais,
vários livros (e afinal só um) de vários autores (e afinal só um), e a própria palavra
desassossego mudou de significado com o decorrer do tempo.
Num primeiro momento o Livro, atribuído a Pessoa ele-mesmo, consistia
sobretudo em textos pós-simbolistas na linha reticente de "Na Floresta do
Alheamento", mas sem serem tão cuidadosamente acabados, e muitas vezes não
são acabados de todo. - Fragmentos, fragmentos, fragmentos -, escreveu Pessoa ao
seu amigo Cortes-Rodrigues, porque estes trechos abundavam em locuções
dubitadas ou em simples lacunas que o autor pretendia preencher mais tarde com
palavras, frases, ou parágrafos inteiros, e alguns dos trechos não eram mais do que
apontamentos para textos que nunca chegaram a ser escritos.
O Livro, desde a sua concepção, ficou sempre um projecto por fazer, por
emendar, por organizar e levar a cabo. A ideia primitiva parece ter sido a de um livro
só de trechos com títulos, e Pessoa deixou várias listas, como esta:
1. Na Floresta do Alheamento
2. Viagem Nunca Feita
3. Intervalo Doloroso
4. Epílogo na Sombra
5. Nossa Senhora do Silêncio
6. Chuva de Oiro (Bailado. O Último Cisne. Hora Trémula)
7. Litania da Desesperança
8. Ética do Silêncio
9. Idílio Mágico
10. Peristilo
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Livro do Desassossego
11. Apoteose do Absurdo
12. Paisagem de Chuva
13. Glorificação das Estéreis
14. As Três Graças (A Coroada de Rosas. A Coroada de Mirtos. A Coroada de
Espinhos)
Certos títulos, como "Intervalo Doloroso" e "Paisagem de Chuva", acabaram
por servir repetidas vezes para textos que, embora independentes compartilhavam a
mesma temática geral anunciada. Outros títulos, como "Peristilo" ou "Nossa Senhora
do Silêncio", designavam ambiciosos works in progress, constituídos por diversas
peças de variada extensão, desde umas poucas frases até umas páginas bem
cheias de letra miudinha. E havia títulos ("Chuva de Oiro" ou "As Três Graças", por
exemplo) para os quais não se encontram textos, quiçá porque não foram escritos. O
Espólio de Pessoa está repleto de títulos para poemas, contos, opúsctilos e livros
inteiros que nunca existiram. Tivesse Pessoa realizado metade dos seus projectos
literários e os tornos ocupariam toda uma Biblioteca.
O Livro do Desassossego, um não-livro dentro da não-Biblioteca, é sintomático
do embaraço do autor. Dá início ao seu projecto escrevendo textos que tentam
elucidar um estado psíquico através de descrições do tempo e de paisagens irreais
("Na Floresta do Alheamento", "Viagem Nunca Feita"), visões idealizadas de
mulheres assexuadas ("Nossa Senhora do Silêncio", "Glorificação das Estéreis") e
imagens orientais ("Lenda Imperial") e medievais ("Marcha Fúnebre para o Rei Luís
Segundo da Baviera"), com reis, rainhas, cortejos e palácios. São prosas poéticas,
com muita atenção dada à cadência das frases e aos efeitos sonoros. Numa
"Paisagem de Chuva", o autor fez questão de sublinhar o som de x na frase "o chiar
da chuva baixou", e o uso de alterações chega a ser abusivo no trecho (423) que
começa "São cetins prolixos, púrpuras perplexas e os impérios seguiram o seu rumo
de morte entre embandeiramentos exóticos de ruas largas e luxúrias", terminando:
"Tanto os tambores, os tambores atroaram a trémula hora" (corresponderá este
trecho à "Hora Trémula" na lista citada?). Nestes textos, a psique subjacente
pertence a Pessoa, mas fica em abstracto. A escrita é impessoal, a voz narrativa
etérea, e as coisas e as frases que designam as coisas pairam, vibrando levemente
com tons amarelos. A palavra desassossego refere-se não tanto a uma perturbação
existencial no homem como à inquietação e incerteza inerentes em tudo e agora
destiladas no narrador retórico.
Mas a força dum outro desassossego - mais íntimo e profundo - impõe-se
pouco a pouco, e o livro assume dimensões inesperadas. Uma destas outras
dimensões não era, na verdade, tão inesperada. Refiro-me ao aspecto teórico e até
pedagógico, tendência quase omnipresente na obra de Pessoa. Assim, a existência
de trechos oníricos conduziu, muito naturalmente, a textos que explicavam o como e
o porquê dos sonhos, com os vários trechos intitulados "Maneira de Bem Sonhar"
formando um autêntico manual para sonhadores principiantes, e não só. Do mesmo
modo, "Educação Sentimental" serve como texto de apoio para os muitos trechos
"sensacionistas".
Foi também neste espírito didáctico, mas já com um resultado algo bizarro, que
o autor escreveu os "Conselhos às Mal-Casadas", explicando às mulheres como
"trair o seu marido em imaginação", prática que consiste "em imaginar o gozo com
um homem A quando se está copulando com um homem B" e que é mais facilmente
realizável "nos dias que antecedem os da menstruação".
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